Cultuar o corpo e a beleza é uma prática antiga, faz parte da história da humanidade. O que muda ao longo dos anos são as características do padrão. Mulheres mais cheinhas, com curvas, pernas torneadas, eram as características femininas idolatradas no século 16, mas a partir do fim do século passado tudo mudou. O que impera na sociedade contemporânea é a ditadura da beleza magra, e o culto ao corpo e à imagem pode chegar ao extremo, à morte, como aconteceu com a influenciadora digital e empresária Liliane Amorim e tantas outras mulheres, insatisfeitas com o que viam no espelho. Aos 26 anos, magra, bonita, bem-sucedida, com mais de 100 mil seguidores nas redes sociais, Liliane fez uma lipoaspiração no início de janeiro que não saiu como o esperado. Seis dias após a cirurgia, foi internada em estado grave com complicações em decorrência do procedimento e não resistiu.
A lipoaspiração é a intervenção cirúrgica que mais mata no Brasil: 19 mortes para cada 100 mil cirurgias. Em entrevista ao Hoje em Dia, a psicóloga, professora aposentada da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de 7 livros na área de relações interpessoais, Clara Feldman, é taxativa: a tirania da beleza traz sofrimento. Para ela, a busca sem fim por um corpo perfeito está em questões emocionais mal resolvidas.
Como você analisa esse culto feminino ao corpo?
Primeira coisa que para mim é óbvia é que essas pessoas que têm culto ao corpo e que muitas vezes beiram ao patológico, estão presos a questões internas. Não existe nenhuma outra razão para este culto patológico ao corpo que não sejam questões psíquicas.
Quais seriam?
Na verdade, é uma conjunção de fatores, não um só. O primeiro é a falada e ‘refalada’ autoestima. Eu até prefiro colocar uma outra expressão, autoimagem. Quando a pessoa não tem uma autoimagem positiva, incluindo o corpo, tende a compensar essa imagem negativa, esse mal relacionamento consigo mesma, através de coisas externas que, na verdade, não vão resolver o problema.
O que as mulheres devem fazer para tentar resolver este problema?
A gente não tem varinha mágica e nem faz milagre, isso não é de um dia para o outro. É um trabalho que deve ser feito com a psicoterapia, com um terapeuta competente. Eu brinco que tem que casar o santo do cliente com o santo do terapeuta, porque é um trabalho demorado para a pessoa descobrir como foi que ela desenvolveu um desamor, um desafeto por si mesmo, o que, na maioria das vezes, acontece na infância.
Mas o que a gente percebe é uma supervalorização da própria mulher. Não é isso, então?
Não. Eu acredito piamente que quando qualquer aspecto de qualquer pessoa é muito enfatizado por ela, leia-se o contrário. Por baixo da supervalorização do corpo existe uma subestima-ção do próprio corpo e do valor total como pessoa. A pessoa usa como estratégia fazer exatamente o contrário, faz uma propaganda dela mesma, quer se convencer de que é uma pessoa legal, que tem um corpo perfeito, porque na verdade, no fundo, no fundo, não acha isso. Ela precisa fazer propaganda e divulgar o quanto ela é boa para ela acreditar em primeiro lugar e, depois, para os outros acreditarem. Nenhuma pessoa que conhece o próprio valor tem necessidade de correr risco de vida para ter um corpo escultural.
Precisamos levar em consideração o biótipo da mulher brasileira, que é bem diferente das top models, que, infelizmente, é o modelo que algumas mulheres querem atingir, né?
Isso para mim tem nome: é a tirania da magreza, a tirania da moda, a tirania das modelos, a tirania de uma estética que é completamente subjetiva. Não existe uma estética absoluta e única! A graça é cada pessoa ser bonita, ou ser bem aparentada ao seu modo. Mas são verdadeiros tiranos que andam por aí, tão perigosos que chegam a matar as pessoas.
Como assim?
Para algum modelo, não é só a modelo pessoa, para algum padrão, algum modelo de ser tirano. A pessoa tem que se submeter à tirania. A pessoa mais frágil, mais vulnerável, exatamente essa que não se vê com bons olhos, precisa se submeter à tirania, e as metas que ela se coloca são tão inalcançáveis, às vezes tão inexequíveis, que elas morrem pelo caminho, como aconteceu com a influenciadora digital Liliane Amorim. Ela fez uma tentativa mortal.
Pois é, uma mulher de 26 anos, jovem, bonita, que fez uma lipoaspira-ção. Uma pessoa que se predispõe a fazer uma cirurgia estética nunca imagina o pior...
Todas as pessoas deveriam prever os riscos. Existem pessoas que têm medo, ou medo exagerado, ou são pessoas que têm a consciência e não querem correr o risco. Eu, aos 71 anos, vou fazer uma cirurgia plástica convencional, que se chama abdominoplastia, assim que a pandemia acabar, porque tenho uma configuração patológica na musculatura abdominal e, com isso, fiquei barriguda, que não é compatível com o meu corpo porque sou do tipo “mignon”. Vou aproveitar e fazer uma plástica na barriga, mas não vou fazer lipoaspiração.
Você não estaria cedendo à tirania?
Não, esse é um terreno muito subjetivo.
Mas, aí, você cai na questão da estética, não concorda?
Concordo. Mas eu não considero o meu desejo e a minha decisão uma questão patológica.
Não seria um culto à beleza também?
Quando você fala culto à beleza, vejo algo além desse tipo de cirurgia, que é convencional. Acho que a frequência com que as pessoas vão para as cirurgias plásticas ou para os procedimentos é um sinal de que alguma coisa está errada. É muito diferente uma pessoa ir várias vezes para a sala de cirurgia daquela que vai uma vez e não volta mais. Imagina que eu receba duas clientes: uma, essa menina de 26 anos (a influencer); a outra, uma cliente um pouco mais velha, incomodada com a barriga dela também. Eu não vejo as duas com o mesmo tipo de problema. Têm fatores que tornam ou não essa necessidade patológica.
A gente tem visto muito nas redes sociais uma exposição excessiva do corpo e cada vez mais tem aumentado...
Eu me acho uma pessoa muito aberta, muito livre, muito pouco julgadora, mas acho que a coisa já fugiu da adequação, já fugiu do razoável. Fotos do perfil do WhatsApp de mulheres, profissionais, na praia com biquíni e latinha de cerveja, ou só com a parte de cima, mostrando a mama quase toda, que deve ser de silicone, o que também não é problema, mas esse culto ao corpo está aparecendo nos lugares e em situações mais impróprias, na minha visão.
Qual a consequência de tudo isso?
Muitas. Mas numa única palavra, acho que isso traz muito sofrimento e, às vezes, alguns mal-entendidos também. Porque esse culto chega ao patológico, é uma perseguição de uma meta inatingível. E alguém que está correndo atrás de uma meta e não atinge, como ela fica? Uma frustração muito grande. Ela pode fazer o corpo mais lindo, mas como a questão dela não é externa, é interna, perde a graça. É aquela situação em que uma pessoa quer uma meta e no minuto em que alcança já quer outra. Você fazer uma plástica na esperança de que vai ficar linda, maravilhosa, perfeita, com motivação externa, não é real. Na hora que está pronta, já desinchou e está linda, seis meses depois está ruim de novo. Não existe cirurgia plástica para a alma, só terapia, então, não tem jeito. Por isso, acontece a sequência de procedimentos.
Como fica a questão psicológica quando a pessoa não gosta do resultado do procedimento?
A pessoa busca uma mudança física e externa por razões psicológicas e emocionais; a pessoa faz esse tipo de procedimento para ficar mais feliz, e, aí, quando você fica feliz, é uma libertação. Emocionalmente, pode ser a melhor coisa da vida. Mas pode ser a pior quando não dá certo. A pessoa perde a alma dependendo do que faz com o rosto, com a fisionomia. Mas tem também a fuga da alma, quando a pessoa fica bonita, mas não se reconhece. E tem a insatisfação interna, crônica, que pode ser o melhor cirurgião plástico do mundo, que fez um trabalho maravilhoso, a pessoa não perdeu a alma, mas ela continua insatisfeita porque o problema é em outro lugar.
A pessoa que não está satisfeita vai fazendo outros e outros procedimentos e vira um vício...
Sim, esse culto vira um vício, é o patológico.
Como lidar com isso?
Pode parecer que eu estou puxando sardinha para o meu lado, mas não vejo outra maneira senão a terapia. Qual é o propósito de uma terapia? É a pessoa se compreender melhor e, se ela tem um problema que pode trazer risco de todas as naturezas para ela, tem que entender porque precisa fazer uma plástica após a outra. Tem uma razão, uma conjunção de fatores que determina essa necessidade patológica. É pior ela continuar mexendo por fora, porque ela tem que mexer por dentro.
O culto à beleza é uma escravidão?
Toda vez que você se torna escravo de alguém ou de uma situação, isso te traz sofrimento. A pessoa escrava não tem escolhas na vida. Não pode escolher, não pode decidir. É uma presidiária do próprio problema.
Qual a orientação para quem não gosta de uma parte do corpo?
Tenho uma frase que é exatamente o que acredito. Antes de querer mudar a sua aparência física, entenda a sua alma. Sem você entender seus sentimentos, especialmente sem entender a motivação que está te levando a buscar essas coisas, você não deve mudar seu corpo. Você entendendo a sua alma, aí pode, inclusive com a sua própria liberdade, sem ser escrava de moda, de padrão, de nada. Mas, para isso, é preciso ter um acompanhamento para tomar uma decisão consciente.
fonte: Hoje em Dia, escrita por Maria Amélia Ávila